Cinco Segundos - Capítulo VI: Vidas Lacustres com Fundações de Aço
Ele conhecia aquele marujar suave mas o cérebro recusava-se a associar ideias e a elucidá-lo quanto à sua origem. Só alguns minutos depois a sua mente baralhada encontrou as palavras: ondas! Pequenas ondas batendo contra qualquer coisa, produzindo um murmurar suave que tudo preenchia. Alguns momentos depois sentiu o cheiro, diferente dos odores habituais em Bluebank ou em qualquer outra superpovoada zona. O mar, era o mar que cheirava assim! Biliões de litros de todas as porcarias imagináveis produzidas através do longo e tortuoso caminho que era a existência humana. Um líquido podre que de água teria pouco mais que a recordação de outros dias, num passado azul que se perdera para sempre. Depois apareceram as sombras desfocadas que gradualmente foram ganhando cor e consistência, até se transformarem na paisagem nítida de um quarto desarrumado, pequeno e mergulhado num crepúsculo que se modificava de instante a instante com os reflexos nervosos da água. Os membros entorpecidos foram-se apresentando ao serviço mas pareciam recheados de chumbo e aguardente. A primeira tentativa para se levantar terminou com um gemido de dor no sobrado velho e húmido. O seu cérebro reaprendeu a fazer perguntas: que raio se tinha passado no apartamento de Colbert MacMahoney? Que sítio era aquele onde se encontrava?
A resposta à segunda pergunta surgiu-lhe sob a forma de um longo rugido. Conseguiu arrastar-se até à pequena janela e olhar para o exterior. O animal de metal continuava a rugir, isolado nas águas costeiras, preso ao fundo por milhares de metros de cabo e lastro pesado. A instalação recicladora parecia uma obra de um demente, uma gigantesca aranha com milhares de pernas que eram tubos de metal e centenas de bocas que eram biofornos e outros dispositivos. Se todas as instalações recicladoras, se todos os renovadores de ar e todos os alimentadores e centrais de fusão se avariassem ao mesmo tempo bastariam alguns dias para o mundo deixar de existir. O ar seria veneno puro e a água pura tornar-se-ia memória. Restaria um deserto imenso, global, feito de polibetão envelhecido e velhas carcaças dos animais que tinham sido demasiado estúpidos para conseguirem sobreviver.
Sentia-se enjoado e a cabeça parecia sobrevoar-lhe o tronco, sem a âncora que era o pescoço para a unir ao resto do seu eu.
Aquele lugar era algures na costa leste, se se podia chamar costa às construções apoiadas na base e nas colunas de metal que invadiam o oceano por várias dezenas de quilómetros. A pouca luz que ali chegava provinha da direcção oposta ao mar, anunciando mais um crepúsculo. Rickert já controlava melhor os seus movimentos, mas continuava sem respostas e com bastante fome. O enjoo dissipara-se rapidamente e fora substituído por uma dor de cabeça.
Os seus sentidos cada vez mais alerta detectaram o ruído proveniente da porta. Alguém mexia na fechadura! A porta abriu-se sem ruído e uma figura magra entrou no quarto.
- Massa Lenta! – exclamou Rickert admirado.
- Ainda não foi desta que morri. – respondeu depois de se libertar do abraço de Rickert.
- O que é que nos aconteceu em Little Dresden?
- Qualquer narcótico em gás que nos enviou para o mundo dos sonhos.
- Não me recordo de ter sonhado. Já sabes onde é que estamos?
- Na pior zona da megalópole lacustre da costa leste: Flatland. – o Massa Lenta tirou qualquer coisa do bolso – Reconheces isto?
Rickert pegou no brinco em forma de cornucópia. Conhecia-o bem, vira-o muitas vezes ornamentando a orelha de Vinnie Smolensk.
- Ela esteve aqui?
- Eu acho que vocês já estiveram aqui.
A iluminação fraca não ajudava muito no labirinto de ruelas de Flatland. Ouvia-se como ruído de fundo um constante ressoar metálico, milhares de pés caminhando pelos pavimentos metálicos das ruelas dos diversos níveis. Rickert e o Massa Lenta progrediam pelo último nível, abaixo deles só as estruturas de apoio e o mar. Caminhavam em silêncio e tentavam passar despercebidos, se é que isso era possível em Flatland.
- Não achas estranho o brinco ainda estar ali, num sítio tão visível? – disse Rickert quebrando o silêncio.
- Estranho sim, mas não impossível. Olha um bar! Vamos comer qualquer coisa?
- Não seria melhor escaparmo-nos daqui?
- Ouve Rickert, não queres saber o que realmente aconteceu? – Rickert concordou com um movimento de cabeça – Nunca estiveste tão perto de o saber como agora, – continuou o Massa Lenta – por isso acho que devemos continuar por aqui. Temos de arranjar armas.
O bar tinha um aspecto miserável, a espelunca de Sakky ao pé daquele era um restaurante de luxo. Pior que o aspecto do bar só o dos clientes. Sentaram-se numa mesa a um canto e pediram guisado e vinho para os dois. O guisado era o menos suspeito dos pratos apresentados.
- Massa Lenta, como vamos pagar se eles nos tiraram tudo?
- Acho que aquele narcótico te fez mal ao cérebro. Donde é que pensas que veio a minha gazua? Eu não coloco tudo nos bolsos, só as coisas menos importantes.
- És um anjo, Massa Lenta.
- Não me gozes...
O guisado não era mau de todo e o vinho conseguia beber-se. Rickert chamou o empregado:
- Precisávamos de comprar umas fisgas, sabe onde podemos consegui-las?
- Depende do que quiserem. Se não for nada de muito sofisticado talvez se possa arranjar.
O Massa Lenta antecipou-se a Rickert.
- Duas Jeggler, dois revólveres e três granadas P2.
O homem ficou parado por uns instantes.
- Dois mil e cem, só aceito dinheiro vivo, nada de cartões. Amanhã...
- Dois mil e duzentos se as entregar já. – interrompeu o Massa Lenta. O taberneiro afastou-se e só voltou passados uns dez minutos com um embrulho feito de jornais sujos nas mãos.
- São mais dez pelas munições.
O Massa Lenta contou o dinheiro e passou-lho para a mão.
- Como é que uma pessoa consegue informações neste sítio?
- Pergunta-me a mim. – o cabelo dela oscilava entre o louro quase branco e os tons de ouro velho, com um período de oscilação muito curto. Sentou-se numa cadeira e serviu-se do vinho pelo copo de Rickert.
- E quem és tu? – indagou Rickert.
Ela bebeu o vinho todo antes de responder.
- Kirl Takashi-Coltrane, mas os meus amigos chamam-me apenas Kay.
Rickert pensou que os traços japoneses dela eram mais que esbatidos para um sobrenome tão evidentemente japonês.
- Soubeste de alguma coisa sobre um homem e uma mulher que para aqui foram trazidos há pouco mais de uma semana?
- Eu sei tudo, Rickert. – só a mão do Massa Lenta no seu ombro impediu Rickert de saltar da cadeira. Olhou em sobressalto para Kirl Takashi-Coltrane.
- Ela sabe tudo, Rickert. – disse o Massa Lenta num tom enfático – Deixa-a falar primeiro.
- Cem unidades e têm a história completa.
- Ouve, minha... – o Massa Lenta acalmou-o mais uma vez e respondeu a Kay.
- Dou-te cinquenta e acho que estás com muita sorte.
- Ok, aceito, mas vamos embora daqui. Andam à vossa procura e mesmo que assim não fosse o bar do Jikx nunca foi muito seguro.
- Estejam à vontade. É pequena e pobre mas está razoavelmente limpa.
Rickert deixou-se cair exausto num velho mapple de tecido coçado. O Massa Lenta sentou-se no chão e começou a montar e a carregar as armas.
- Muito bem Kay, somos todos ouvidos. Começa a falar – ordenou Rickert. Ela sentou-se na beira da cama depois de despir o blusão grosso que usava e começou a contar a história que valia 50 unidades.
- Foi o Emílio que me avisou das coisas estranhas que se passavam na casa ao lado da sua. Há já algum tempo que ele notava actividades fora do normal naquele bloco. Além disso, nunca conseguira saber quem lá habitava. O Emílio é curioso, e numa noite há poucos dias atrás viu quatro tipos chegarem com dois embrulhos muito suspeitos. Por aqui, se se dispuser de um bom vibrosinth consegue ouvir-se o que se passa na casa ao lado. Existe muita interferência, muitas vibrações de fundo, mas sempre se consegue ouvir qualquer coisa. Ele ouviu nomes, lugares e mais algumas coisas: eles fizeram um bonito trabalho nos seus miolos. Emílio ouviu qualquer coisa sobre programação hipnótica e elisão posterior. Sabe o que é isso?
- Eles fizeram com que ele desempenhasse certas tarefas e deixaram programado o seu posterior apagamento. – respondeu o Massa Lenta – Mas esse processo não é irreversível. – disse peremptório para Rickert.
- Eu sei... Por mais algumas unidades posso levá-los a uma pessoa que conheço e que faz trabalhinhos desse tipo. Estão interessados?
- Até agora não nos disseste nada de novo, essa informação não vale 50 unidades. Como é que sabias que o meu nome era Rickert?
- Quando o Emílio me disse que ontem tinham trazido mais dois presuntos resolvi montar guarda à casa suspeita. Segui-vos durante todo o caminho, depois somei dois mais dois.
- Como?
- Bem... confesso que foi Emílio quem me disse o teu nome. Ele esteve à escuta com o vibrosinth.
- Achas que devemos acreditar nela?
O Massa Lenta encolheu os ombros.
- Tanto faz.
- Mais nomes! E lugares, não disseste que esse tal Emílio tinha ouvido referências a lugares? E Vinnie, o que lhe aconteceu?
- Uma coisa de cada vez, patrão! Os nomes Colbert, Ariel e Lucius dizem-lhe alguma coisa? E Arif Kalter? Já foi alguma vez a Willow? E a Moonkrater?
Eram demasiadas coisas.
- Kay, como é que se chama o teu amigo especial?
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